Professoras Desesperadas

Ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar.


Chamar licenciatura a cursos de três anos é vender gato por lebre

Ex-dirigente da associação ambientalista Quercus e professor do Informática, João Gabriel Silva é conhecido por ter um discurso desassombrado e, bastantes vezes, contra a corrente. A reputação com que, recentemente, assumiu a presidencia dos conselhos Científico e Directivo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, que tem seis mil alunos e de 500 professores.
João Gabriel Silva recebe-nos na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), para falar do momento decisivo em que estão a sua escola e o Ensino Superior em geral. Seguem-se críticas às universidades que se estão a "politecnizar", à cegueira do Governo em querer acabar com alguns cursos, à incompetência entre professores, à balda entre alunos. De caminho, diz que a FCTUC vai reformar-se "profundamente", para se preparar para a competição que aí vem.

Jornal de Notícias |Ao assumir a liderança da FCTUC, disse que queria transformá-la numa escola de referência europeia. Já deu passos nesse sentido?
João Gabriel Silva | Já. Consequência disso foi termos optado por adaptar quase todos os cursos a Bolonha só em 2007/2008. Não vou dizer nomes, mas a maior parte das universidades portuguesas fez estritamente cosmética para se adaptar a Bolonha. A gente não entra nessa brincadeira.

Qual era o risco?
Um risco substancial, porque Bolonha é a União Europeia do ensino superior, é uniformizar e aumentar muito a competição. Ou somos instituições de qualidade, ou as elites vão tirar os cursos a Espanha, França ou Inglaterra… Bolonha facilita imenso a mobilidade. O doutor Alberto Amaral tem falado numa agenda escondida em Bolonha. E, caricaturando, diz que haverá países encarregados do liceu, outros das universidades. Portugal é candidato ao liceu.

Como se evita isso?
Com qualidade. Temos de ter capacidade de atrair pessoas de outras proveniências.

Mas é possível, com um ano de adiamento de Bolonha, incrementar qualidade?
É. Não há memória nos decénios recentes de uma reforma dos cursos todos, e a FCTUC está a repensar em profundidade a orientação e os objectivos dos cursos, a maneira como as aulas são dadas. A Via Rápida [programa que permitirá aos melhores alunos fazerem um curso de cinco anos em quatro] é já resultado dessa reflexão. Se tivermos tempo, as coisas podem ser muito mais bem feitas.

O ensino universitário corre o risco de se aproximar do modelo do politécnico?
Corre. Antes de Bolonha, temos licenciaturas de quatro ou cinco anos, mestrados de dois e doutoramentos de quatro ou cinco. Depois de Bolonha, vamos ter três ciclos. E há um primeiro ciclo que se chama bacharelato, mas a que, em Portugal, se decidiu chamar licenciatura. E os primeiros ciclos vão ser quase todos de três anos. Portanto, era mais lógico chamar-lhes bacharelatos, designação que até já existia. Mas não. Estão tentar convencer as pessoas de que a licenciatura pós-Bolonha é igual à anterior. Isto é para rir, não é razoável. Por isso é que eu digo que há uma "politecnização" (os politécnicos dão, tradicionalmente, cursos curtos com objectivos profissionalizantes). Tentar oferecer em três anos o que se fazia em cinco é "politecnizar" as universidades. E há muitas universidades em Portugal que o fizeram. Vão vender gato por lebre.

Como se convence os alunos a fazerem o segundo ciclo?
Um curso de engenharia passa os primeiros dois, três anos nas matérias básicas matemática, física, química... Se queremos que as pessoas, em três anos, já saibam alguma coisa de engenharia civil, não podemos gastar dois anos em matemática e física. Ora o que a gente diz é que os nossos primeiros e segundos ciclos estão pensados para funcionar em conjunto. É a nossa missão na Universidade. O primeiro ciclo terá uma componente forte de matemática e física, e a área técnica, propriamente dita, adquire-se no segundo. Os estudantes escolherão.

Mas a grande motivação para o segundo ciclo não será ditada pelo mercado de trabalho?
Os empregadores vão perguntar se o segundo ciclo é um valor acrescentado. Temos que desenhar segundos ciclos que representem valor para quem vai empregar. Para isso, temo-nos comparando internacionalmente, temos andado a fazer, sistematicamente, inquéritos aos empregadores e aos ex-alunos. "O que acham dos nossos licenciados pré-Bolonha? Que necessidades vão ter nos tempos mais próximos?" E aos ex-alunos "O que vos foi mais útil? Quais as lacunas principais?"

O movimento estudantil trocou a bandeira das propinas pela de Bolonha...
Bolonha é uma oportunidade e um perigo. Com a utilização do mesmo nome numa coisa que demorava cinco anos e agora demora três, o Governo pode ter a tentação de dizer "Ok, a gente financia licenciaturas, o resto fica por vossa conta".

Mariano Gago ignora qualidade
Presidente da FCTUC admite que há aulas que não valem a pena

Os alunos faltam muito às aulas?
Bastante. Mas há muitas aulas que têm um interesse tão relativo que é perfeitamente justificável que não ponham lá os pés.


Como se põe os professores a dar melhor as aulas?
Entrará em vigor um sistema de controlo de qualidade, com inquéritos aos estudantes, indicadores como a taxa de aprovação e análise por pessoas independentes. A cultura enraizada de que o professor faz mais ou menos o que lhe apetece é chão que deu uvas. O professor deixará de ser a fortaleza para onde ninguém pode olhar. A gente vai olhar e, se não estiver a correr bem, vai ter que se fazer qualquer coisa. Nem que seja mudar o professor.

Discurso difícil.
Mas que eu tenho feito sem nenhuma tergiversação. Os primeiros ingredientes começam a funcionar em 2006/2007. E precisaremos de dois ou três anos para estabilizar o "qualitómetro" (risos). Aí passamos a ter outra margem de actuação. Até aqui, é o diz que disse "Ah, aquele fulano dá umas aulas que são uma porcaria". Assim é difícil, porque a gente vai lá e ele responde que não é verdade. De futuro, recolhida a informação, dizemos: "Oh amigo, isto está a correr mal, não vale a pena estarmos com conversas, vamos é discutir como se resolve o problema".

Aí será ainda mais difícil...
A OCDE está a avaliar o sistema de ensino superior e, numa reunião, queixei-me de termos poucos mecanismos para actuar sobre os maus professores. Uma pessoa da comissão disse-me "Vocês não dão licenças sabáticas aos maus professores?! " Tive que meter a viola no saco. De facto, como forma de actuar sobre um mau professor, a sabática é pouco, mas melhor que nada. E há outros mecanismos... No meu departamento, de Informática, fazemos inquéritos aos alunos, que, anonimamente, atribuem uma nota ao professor, e afixamos os resultados na parede. Dez anos passados, podemos dizer que muitos envergonharam-se da nota afixada na parede e passaram a fazer o serviço melhor.

É dos que ficaram satisfeitos com a nomeação de Mariano Gago para ministro?
Fiquei com expectativa, porque ele tinha feito coisas bem, quando foi ministro da Ciência. Agora, não estendo a apreciação a tudo o que tem feito.

De que é que não gostou?
Um exemplo recente o não financiamento dos cursos com [menos de] 20 alunos. É uma medida absolutamente cega, os critérios de qualidade não são tidos em conta. Se há cursos de engenharia que, para angariar alunos, nem sequer pedem Matemática como disciplina de acesso, há outros que exigem qualidade e, se calhar, ficam abaixo dos 20. Na Europa do ensino superior, onde é preciso qualidade e exigência, aplicamos um número cegamente? E isto não tem nada de inocente. A gente tem, por exemplo, quatro cursos de determinada área, todos perto do limiar dos 20 alunos. Se fecham dois, os candidatos vão-se concentrar nos que sobram. É relevante saber se os que sobram. são os melhores, ou os que utilizaram truques para atingir um limiar mais elevado. Ou mesmo se são aqueles que estão nas zonas demograficamente mais nutridas? O facto de um curso estar em Lisboa não o torna melhor que um curso que está em Coimbra, em Aveiro ou no Porto.

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