O último adeus ao ensino nas aldeias
0 Comments Published by . on sábado, setembro 02, 2006 at 10:52 da manhã.Na Figueira da Foz, esta escola vai fechar e mudar a vida a Rafael Alemão
Na Figueira da Foz, esta escola vai fechar e mudar a vida a Rafael Alemão
"Morte”, “desertificação”, “sem futuro”, são palavras de autarcas, alunos e ex-alunos das escolas do 1.º Ciclo que vão encerrar em todo o País. As populações de muitas aldeias não concordam com a medida do Governo, outras estão resignadas, mas todas concordam que é mais um passo para o fim dos meios rurais. Sem crianças e ensino, as aldeias acabarão por extinguir-se pela força do chamado ‘progresso’.
As populações afectadas estão tristes, mas resignadas, e consideram que as escolas – um símbolo do desenvolvimento do povo – vão transformar--se na “casa mortuária” de muitas aldeias. “É mais uma acha para a fogueira da desertificação que ameaça o Interior do País”, diz Albano Almeida, presidente da Junta de Casal Vasco, em Fornos de Algodres (Guarda). A freguesia tem 230 habitantes e oito alunos que frequentam o Ensino Básico e foram transferidos para a sede do concelho.
Além da tristeza, as populações não compreendem as contradições: a escola do Ensino Básico de Casal Vasco é um caso “paradigmático”, porque há quatro anos “foi alvo de profundas obras de recuperação”, onde o Estado investiu 200 mil euros. As suas condições fazem inveja a muitas outras: está rodeada de um espaço verde bem tratado, tem um equipamento moderno e um vasto recreio a partir de agora à mercê do mato. “Esta escola era o orgulho da nossa aldeia, mas agora tornou-se um pesadelo”, desabafa Albano Almeida, de 72 anos, desiludido com a medida do Ministério da Educação. O autarca é ainda mais dramático: “Vou ficar conhecido como o coveiro desta escola, mas nós não fomos tidos nem achados nesta situação. As localidades que vêem morrer o local onde os seus filhos aprenderam a ler e a escrever ficam mais pobres. Muitas não vão conseguir segurar ninguém, vão morrer aos poucos. As escolas transformaram-se nas casas mortuárias de muitas comunidades.”
Há uma enorme revolta silenciosa nos habitantes de centenas de aldeias que deixam de ouvir os gritos de alegria das crianças no recreio, ou de ver as suas representações teatrais nos dias de festa. “É bem pior do que o fecho de uma fábrica”, opina António Melo, “chocado” quando soube que a primária de Casal Vasco “estava na lista negra”. “Trata-se de uma atitude do Governo que transmite ao povo um sentimento de descrença no futuro, de derrota. A escola é o símbolo de cada aldeia, é aqui que começamos tudo.” O professor aposentado Vasco Homem, que ensinou muitos da aldeia, sente a escola como um grande baluarte da povoação. “Não há ninguém que passe aqui em frente e que não se lembre dos tempos de escola. Estas memórias também vão morrer.”
As crianças, menos saudosistas, são quem vai sentir no corpo, no primeiro dia de aulas, as mudanças: vão levantar-se mais cedo e esperar pelo autocarro da Câmara de Fornos de Algodres que as levará até à sede do município – Casal Vasco fica a seis quilómetros – cheio com miúdos de várias aldeias. São dezenas de quilómetros de cansaço por semana.
Os colegas Daniel, Luís, Francisco, Pedro, Ana e Eduarda, com idades entre 7 e 10 anos – seis dos oito alunos da freguesia – estão tristes com o fecho da escola. “Os meus pais estudaram aqui e eu também queria ficar”, diz Luís; “Não esperava sair daqui tão cedo”, adianta, tímida, Eduarda; “Os meus pais ficaram tristes porque vou passar pouco tempo em casa”, conclui Francisco.
Ainda na Beira Alta, em Colo do Pito, Castro Daire (Viseu) o sentimento de perda é semelhante. As oito dezenas de habitantes – na maioria pessoas idosas –, recusam-se a acreditar que a escola vai encerrar, mas vai mesmo: as dez crianças passam a estudar noutra aldeia.
O edifício n.º 58 da terra parece, à primeira vista, um pouco degradado. Mas, por trás das velhinhas persianas corridas, nota-se que já está despida de todo o equipamento. Na janela, uma pequena Bandeira Nacional – consumida pelo Sol – é o único objecto que se distingue no granito do edifício. As silvas encarregaram-se de ocupar o recreio.
David Silva, de 64 anos, e Honorato Monteiro, de 68, não se conformam. “Não há direito de fecharem a escola.” De chapéu de palha na cabeça e o humor de pessoas “cansadas”, mas “alegres”, os dois recordaram os tempos de meninos vividos na escola. “Sabe – diz o primeiro – eu nunca fui grande coisa aqui dentro, mas matei cá a fome muita vez e livrei-me de trabalhos forçados.” “O povo ficou muito triste ao saber que as crianças vão estudar para outra terra. Aqui só vão ficar os velhos, vai ser uma aldeia fantasma”, adianta David Silva. Mais revoltada e “sem papas na língua” está Maria Teresa Pereira. Enquanto lava a roupa à mão no tanque comum, diz: “Sinceramente, não percebo o que este Governo está a fazer. Fecha escolas, maternidades, qualquer dia fecha-nos em casa.”
O Sindicato dos Professores da Região Centro também condena a “forma” utilizada pelo Ministério da Educação para escolher as escolas a fechar. “As pessoas de Lisboa não conhecem as realidades locais, não sabem que acessibilidades é que as aldeia têm; que rede de transportes, qual a sua localização e o seu meio social. No início do ano lectivo vamos assistir a muitas situações caricatas”, diz o sindicalista Francisco Almeida.
O fecho das escolas “vai ser o princípio do fim de muitas comunidades rurais”. “Vamos correr o risco de, daqui a uns anos, visitarmos a Serra do Montemuro e encontrar uma placa com a seguinte mensagem: ‘Aqui existiram várias aldeias até 2006, altura em que a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, ordenou o fecho das escolas’. O turista inverte o sentido de marcha e vai para onde as pessoas se atropelam umas às outras”, ironiza.
“Os velhotes vão morrendo, os novos vão desaparecendo daqui e fica o lugar deserto”, lamenta Jacinto Henriques, de 42 anos, que mora frente à escola onde tirou a 4.ª classe, em Vila Nova, um dos seis estabelecimentos de ensino das Caldas da Rainha que vão fechar por falta de alunos. As ervas já se amontoam nas escadinhas da entrada e no pátio, as teias de aranha povoam o edifício, o baloiço está ferrugento e há ainda uma pereira com os frutos demasiado maduros. “Os cachopos davam alegria ao espaço, agora só ficam lá os ratos”, diz o agricultor.
As marcas da desertificação da aldeia, a 10 quilómetros da sede de concelho e com cem habitantes, notam-se bem. “Dantes havia duas mercearias e um café, agora só há a colectividade e fechou a escola”, quantifica Jacinto Henriques. “No meu tempo havia dez alunos em cada classe, mas a maior parte da população foi trabalhar para a cidade e ficou lá a viver, passando a haver cada vez menos crianças na terra. Aqui no lugar só tenho meia dúzia de colegas que andaram comigo na escola.”
Este ano, o estabelecimento de ensino – construído em 1961 – ia ter nove alunos, mas a reorganização da rede escolar do 1.º ciclo do Ensino Básico ditou o seu fecho e a transferência das crianças para outras escolas. “É chato, demora mais tempo com os transportes, as crianças já não almoçam em casa e há mais despesas”, explica Jacinto Henriques. A sua filha Cristina, de 12 anos, estudou ali até há pouco tempo e já estava habituada a ter poucos colegas. “Éramos três raparigas e um rapaz, mas tínhamos um computador e contactávamos com os alunos de outras escolas”. O estabelecimento de ensino fazia parte de um projecto de dinamização de escolas isoladas nas freguesias rurais do concelho. O encerramento mereceu o parecer desfavorável da Câmara Municipal. Mas “o Ministério da Educação teve a última palavra”, esclarece o vereador da Educação, Tinta Ferreira. O edifício foi cedido à Associação de Caçadores da Freguesia de Alvorninha, mas a sua utilização é ocasional.
Em Sancheira Grande, Óbidos, o ambiente de frustração é semelhante: “É uma tristeza encerrar a escola”, comenta, sentado num café, Francisco de Oliveira, um dos 200 habitantes da terra. Em Janeiro, os pais dos 14 alunos do 1.º ciclo foram confrontados com a decisão do Ministério da Educação, que invocou o insucesso escolar como razão para o fecho da escola. Um abaixo-assinado contra o encerramento defendia que a situação poderia ser resolvida com apoio educativo, mas a decisão governamental manteve-se. Os pais ainda disseram à Direcção Regional de Educação de Lisboa que iria ser encerrado “um local que o povo ama como o símbolo e orgulho da sua terra”, mas de nada serviu.
A Câmara Municipal não se opôs ao fecho porque considera que os alunos terão melhores condições na escola de acolhimento, a três quilómetros de distância, em A-dos-Negros. “Foram feitas obras de ampliação, com a construção de uma sala de actividades, refeitório e ATL. A autarquia garante o transporte dos alunos”, refere a edilidade.
Mesmo assim, no arranque do ano lectivo, os 18 alunos da Sancheira Grande ainda poderão passar por uma solução provisória, se as obras em A-dos-Negros não estiverem concluídas, como receia a população, enquanto lamenta que seja desactivada uma escola situada no ponto mais alto da aldeia, em local soalheiro e com equipamentos de fazer inveja – um campo relvado sintético, ecopontos, jardim e vedação e, no interior, computador com ligação à internet e uma minibiblioteca.
Mais a Norte, Rafael Alemão, de 9 anos, deixa este ano a escola da Fontela, na Figueira da Foz. É com apreensão que vê a mudança: “Ainda não sei como vou para a escola e se vou gostar. Aqui já conheço tudo, tenho os meus amigos, e é perto de casa. Se pudesse não ia para a outra, mas os políticos de Lisboa obrigam-me!”
MUDANÇA PAGA PELO ESTADO
As câmaras municipais não vão gastar dinheiro com os alunos das escolas com menos de 20 estudantes e com taxas de aproveitamento inferiores à média nacional, que vão encerrar no âmbito do processo de reorganização da rede escolar do 1.º Ciclo do Ensino Básico.
A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) assinou um protocolo com o Governo em que ficaram estabelecidas as condições em que as escolas deviam encerrar. O ME assumiu o pagamento de todas as despesas decorrentes da mudança dos alunos.
António José Ganhão, vice-presidente da ANMP e responsável pela área da Educação, garantiu que “o Ministério fez um levantamento de 1500 escolas que deviam fechar”. Um número que não vai corresponder ao total de encerramentos, uma vez que “vários municípios não concordaram com o fecho das suas escolas.”
O protocolo estabelece que a mudança de escola só pode acontecer caso o novo estabelecimento de ensino proporcione melhores condições aos alunos. Caso contrário, o ME fica obrigado a realizar as obras necessárias para que tal aconteça ou a nomear um professor para a escola de origem, ficando sem efeito o encerramento.
A gratuitidade da alimentação e do transporte também ficou estabelecida no protocolo. “Os alunos têm de ter acesso ao refeitório sem pagarem, de forma a não prejudicarem as famílias, e o aumento dos custos não previstos com o transporte escolar será pago pela respectiva Direcção Regional de Educação”, acrescentou António José Ganhão.
Por exemplo, na Figueira da Foz, vão encerrar sete escolas por terem poucos alunos – menos de dez. A vereadora do pelouro da Educação do município garante que “nenhum aluno será transferido para uma distância superior a três quilómetros e a autarquia assegura o transporte” às 35 crianças que mudam de escola.
A autarca aplaude, “em termos genéricos”, a medida do Governo. Mas não na forma prática como estão a decorrer. A ministra da Educação não tem noção das dificuldades diárias encontradas no terreno”, sublinha Teresa Machado.
MAPA AINDA ESTÁ POR DEFINIR
O mapa com a localização das escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico com menos de 20 alunos, que encerram neste ano lectivo, está ainda por definir. O Ministério da Educação não avança com o nome nem sítio dos estabelecimentos de ensino afectados enquanto as escolas que fazem o acolhimento das crianças não estiverem totalmente concluídas.
Quando a ministra Maria de Lurdes Rodrigues confirmou a intenção de fechar as escolas, o CM apurou junto da Direcção Regional de Educação de Lisboa que na região está previsto fecharem 96 estabelecimentos e 65 na zona do Alentejo. Na mesma altura, o Sindicato de Professores da Região Centro divulgou um estudo que apontava para o fecho de 544 escolas naquela área. No Norte, está previsto que fechem cerca de 900 escolas.
Em 2005, a reorganização das escolas do País levou ao encerramento de 221 estabelecimentos de ensino e à criação de 60 novas unidades.
Um dos concelhos que já divulgaram a respectiva Carta Educativa foi o de Vila Real.
Segundo aquele documento, será possível reduzir os custos médios anuais de 951 mil euros, com a manutenção da rede de escolas propriedade do município, para 209 mil euros por ano em 2016, reduzindo o custo médio anual por aluno de 474 euros actualmente para 123 euros, com melhoria das condições pedagógicas, de segurança e de conforto de estudantes e professores. A Carta Educativa prevê a constituição de quatro territórios educativos e a construção de seis novas escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico e jardins de infância (EB1/JI). A escola Monsenhor Jerónimo do Amaral deverá ser tranformada em Escola Básica Integrada, tal como a escola Diogo Cão. Está ainda prevista a construção de uma nova escola do segundo e terceiro ciclos do Ensino Básico e do Ensino Secundário (EB2,3/S), no caso, para servir a zona oeste da periferia da cidade.
O anúncio do fecho de escolas básicas foi uma das questões mais polémicas do ano lectivo passado. A proximidade da abertura das aulas faz prever que venha a ser outra dor de cabeça para a ministra Maria de Lurdes Rodrigues.
ALGUNS NÚMEROS
554 Número de escolas do primeiro ciclo do Ensino Básico (EB 1) com menos de cinco alunos em todo o País.
1228 Número de escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico com menos de dez alunos, também a nível nacional.
1267 Antigas escolas primárias – hoje do 1.º ciclo do Ensino Básico (EB 1) – têm entre dez e vinte alunos.
239 Número de escolas EB 1 que podem fechar as portas só no distrito de Bragança.
179 Escolas básicas do 1.º ciclo do distrito da Guarda atingidas pelo encerramento.
153 Estabelecimentos de Ensino Básico do 1.º ciclo previstas para fechar no distrito de Viseu.
127 Escolas do primeiro ciclo do Ensino Básico que se prevê sejam encerradas no distrito de Braga.
87% Percentagem de escolas básicas do primeiro ciclo existentes no concelho de Foz Côa que se espera que venham a fechar.
13 Número de escolas do 1.º ciclo fechadas nos últimos quatro anos no concelho de Lisboa por falta de alunos e razões de segurança.
221 Número de estabelecimentos de ensino encerrados em 2005 em todo o País no âmbito da reorganização escolar.
60 Novas escolas criadas no úl-timo ano lectivo para acolher alunos das encerradas e responder a novas necessidades.
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