Professoras Desesperadas

Ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar.


Sala de Aula dentro de um ecrã de computador

A vida trocou-lhes as voltas. Na idade de brincar, viram-se de repente a lidar com coisas sérias. Problemas de saúde graves que os obrigaram a deixar a escola. Ou melhor, o edifício. Em Portugal, há hoje 262 crianças internadas em hospitais e a "frequentar" o ensino através da teleaula. Outras 31 assistem às aulas em casa, por videoconferência. A tecnologia abriu-lhes uma janela e criou uma escola... feita à medida.
De acordo com Filomena Pereira, directora dos Serviços da Educação Especial e do Apoio Sócio-Educativo, o recurso à teleaula visa dar resposta a "situações limite". É aplicado geralmente a "crianças com internamento prolongado, em casa ou no hospital", muitas com problemas do foro oncológico ou problemas motores graves ou degenerativos. Mas, sublinha, "cada caso é um caso" e as soluções têm que ser adaptadas às necessidades das crianças e das famílias. "Não é tanto uma questão assistencial, mas mais uma questão de direito", explica. O processo, admite, "é moroso", mas "não se pode falar em lista de espera".
Hoje, e segundo os dados oficiais, a teleaula chega a crianças internadas em cinco hospitais da região de Lisboa: uma no Garcia de Orta (ver página seguinte), 24 no Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão, 64 no D. Estefânia, 70 em Santa Maria e 103 no Instituto Português de Oncologia. Números sempre a mudar, já que uns regressam à escola ou a casa, outros são traídos pela doença.
Cada unidade trabalha com uma ou duas escolas de referência e há dez professores destacados a tempo inteiro nos hospitais para dar apoio. "Uma gota num oceano", lamenta Eulália Cordeiro, coordenadora do Centro de Avaliação das Novas Tecnologias da Informação, que gere estes projectos na área da Direcção-Geral de Educação de Lisboa.
A equipa fez um levantamento junto de todos os hospitais da região e verificou que, dos 60% que responderam, só estas cinco unidades possuíam recursos humanos de educação e recursos tecnológicos para apoiar os alunos do básico. Um cenário que fez Eulália Cordeiro apresentar uma proposta ao Ministério da Educação, para colocar "pelo menos um professor e um posto com Internet em cada hospital".

Ir ao quadro sem sair de casa
Há um olho mágico que todos os dias filma o interior das aulas e o transmite em directo para o computador da Daniela, de 12 anos, que assiste a tudo a partir de casa. A doença arrancou-a da escola e isolou-a entre quatro paredes. Hoje, graças à videoconferência, vê-se de novo entre os amigos da primária. Até vai ao quadro, ditando as respostas... ao microfone.
São 11.00. Na pequena sala da EB2 D. Manuel de Oliveira Perpétua, em Porto de Mós, já há muito que ninguém estranha a objectiva colocada no alto da parede de tijolo, oposta ao quadro e à mesa da professora. Da mesma forma que ninguém estranha o computador sempre ligado, de onde espreita a criança, a partir de Alcobaça.
Daniela não tem defesas próprias e é portadora da doença do neurónio motor, que causa uma deficiência motora progressiva e acentuada. Ou, como explica o colega Pedro, "um problema de nascença que faz com que não se consiga mover e seja muito fraquinha".
Anabela, a professora de matemática, já interiorizou a rotina. Aponta o comando à câmara e obriga-a a virar um pouco, para filmar melhor o que escreve no quadro. Com gestos rápidos, ilustra no fundo verde as noções de percentagem que vai explicando à turma do 6.º ano. E nem se perde no raciocínio, quando avança e tem que puxar o fio do microfone. "Percebeste, Daniela?", vai repetindo. "Sim", sorri a criança, no ecrã.
Daniela não põe o dedo no ar quando quer responder - diz "eu", ao microfone. E não escreve os exercícios do manual ou preenche com a caneta as fichas e os testes - dita as respostas à mãe ou à professora que a apoia em casa, consoante o dia. Mas é uma aluna como qualquer outra. Ou talvez melhor. Na sua pauta das notas, só há 4 e 5. E desengane-se quem pense que é por ser tratada de modo especial. Quando alguém lhe pergunta "Queres ajuda?", responde "já fiz". E, nos trabalhos de grupo, a sua presença é disputada.
"A Daniela é uma lição de vida", garante Anabela. "Luta", nunca se queixa, faz sempre os trabalhos de casa, só falta "se estiver muito doente", como diz Pedro.
A câmara, avisam os alunos, nem sempre vira à primeira e às vezes a imagem falha, "fica toda azul". Mas não é dramático. A turma é a mesma desde o 1.º ano, quando Daniela ainda se sentava na carteira ao lado dos colegas. Depois a doença foi-se agravando e deixou de ir. Hoje, e desde Janeiro de 2005, após dois anos sem ir à escola, Daniela está de volta. E até Ricardo, o reguila da turma, sabe os cuidados a ter para que a aula resulte. "Não podemos fazer muito barulho." O que "às vezes é difícil".
"É uma turma muito humana", conta Anabela. E especial: foi a mesma que há quatro anos viu a roda de um camião cair no recreio e tirar a vida a uma colega...
Benjamim Gil, o director de turma, não desistiu até instalar a videoconferência. Mas foi complicado, conta, "a manutenção era dispendiosa". Foi então que conseguiu um acordo com a Fundação PT, que queria testar uma nova tecnologia de teleaula e é quem cobre todos os encargos, desde o início.
Os amigos têm saudades de brincar com Daniela. E talvez por isso se empenhem tanto em incluí-la nas brincadeiras, conversando e cantando com ela ao microfone, no final da aula, ou enviando-lhe fotos de todas as actividades. É que, como confessa Ricardo, "é bom tê-la no PC, mas não é a mesma coisa".

Estudar sem sair do Hospital
Antes de ter ficado tetraplégico, Rafael nunca tinha mexido num computador. Hoje, com 14 anos, conversa no messenger com os amigos, ouve músicas em MP3, envia mails com piadas. Continua sem poder mover o corpo, mas domina o PC. E até vai às aulas, sem sair do hospital. Tudo tocando apenas com a bochecha num sensor.
No Garcia de Orta, em Almada, Rafael encontrou uma casa. E uma escola. Ao contrário do que acontece nas outras unidades de saúde - onde a videoconferência é só duas ou três vezes por semana e o aluno vai desenvolvendo as tarefas educativas no resto do tempo -, Rafael assiste a todas as aulas das disciplinas que tem este ano no seu currículo: História, Inglês e Matemática - a sua preferida.
"No início foi um bocadinho difícil, mas agora gosto", confessa Rafael num sussurro. O mesmo que o obriga a falar com a turma através de mensagens escritas, no computador, e não via microfone.
Respirando com a ajuda de um ventilador, sentado na cadeira de rodas oferecida pelo seu Benfica, num canto do corredor do serviço de pediatria decorado com posters do clube, espera pela imagem da aula de História. Às 15.23, aparece no ecrã a sala da escola de Alcabideche. "Já mandei por mail a matéria que vamos dar", avisa a professora Maria José, em grande plano.
Ao lado de Rafael, Fátima, a docente que há três anos o apoia no hospital e diz já ser "da família", vai- -lhe folheando o manual e ajudando a explicar as instituições políticas de Roma - aquelas que a colega, do lado de lá do ecrã, vai debitando, em passo acelerado. Através da teleaula, Rafael já completou os 5.º e 6.º anos. Agora no 7.º, não desiste. As notas e o modo como organiza minuciosamente os assuntos em pastas, atestam os elogios dos professores: é dos melhores da turma.
Se Rafael aprendeu depressa a tecnologia que lhe permite ir à escola - trocando de aplicações a uma velocidade que desafia qualquer adulto -, entre os docentes a questão não é tão simples. "Este ano ainda há quem lhe envie os testes pelo correio...", conta Fátima.
Herculina, a mãe, ainda chora quando se lembra das três meningites que se seguiram ao acidente de bicicleta e das complicações que o deixaram tetraplégico, aos dez anos. A família não tem condições para o ter em casa e por isso Herculina, auxiliar de limpeza, sai todos os dias do trabalho para ficar com ele no hospital das 18.00 às 23.00. Todos os dias da semana excepto um, como ficou combinado, por motivos terapêuticos. "Mas foi preciso começar tudo do zero."
Primeiro, Rafael aprendeu a piscar os olhos, para comunicar. Depois a escolher as letras que a família apontava numa cartolina. Mais tarde a terapia da fala. Hoje, com a tecnologia adaptada a si, é um óptimo aluno. "Só não gosta de fazer um ano em dois, porque perde o contacto com os colegas", diz Catarina, a irmã de 18 anos. "E sabe mais do que eu sobre História..."
E, mesmo depois de tudo o que passou, Rafael não perde o sentido de humor. Com a ajuda das enfermeiras, que o chamam de "sobrinho", já pintou o cabelo com água oxigenada e até colou um piercing na orelha. Já apareceu na televisão, recebeu a visita do Nuno Gomes e do Simão, conheceu um actor dos Morangos com Açúcar. E faz noitadas a ouvir música na "catedral", como chamam ao seu quarto vermelho-águia. A enfermeira Elsy, que o acompanha desde o início, resume a história: "Este rapaz quer e gosta de viver."

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