Castigos corporais "lícitos" e "aceitáveis"?
0 Comments Published by . on quinta-feira, abril 13, 2006 at 11:50 da tarde.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que considerou “lícitas” e “aceitáveis” as estaladas aplicadas pela encarregada de um lar em Setúbal a crianças deficientes mentais – divulgado pelo jornal ‘Público’– obteve duras reacções durante todo o dia de ontem.
Enquanto a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados considera que a decisão “abre um péssimo precedente e transmite uma mensagem muito perigosa”, o Comité Português para a UNICEF considerou que a decisão do STJ “contraria o texto da Convenção das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo nosso país há mais de 15 anos, o que lhe confere força de lei”.
A organização lamentou “com veemência” o conteúdo do acórdão: “É especialmente lamentável que o STJ tenha pronunciado esta decisão num momento em que a comunidade internacional está a prestar uma especial e redobrada atenção à questão da violência contra as crianças”, refere em comunicado da UNICEF Portugal.
Nos termos da Convenção os Estados devem proteger-se todas as crianças contra “todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração”.
Neste sentido, refere o Comité Português para a UNICEF – liderado por Madalena Marçal Grilo –, as Nações Unidas já há mais de 15 anos que têm vindo a afirmar que as palmadas, as estaladas e outros castigos desumanos, como o encerramento de crianças em quartos escuros, consubstanciam casos de violência contra crianças pelo que representam claras violações da Convenção.
O gabinete referiu que Portugal tem vindo a ser instado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas a rever a sua legislação nesta matéria.
Decisão não é inédita
“Absurdo e vergonhoso” é como o advogado António Marinho classifica o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. O jurista vai mais longe e sublinha que o mais grave é que decisões destas por parte do STJ “nem sequer são algo de inédito na nossa Justiça”. (Ler “Quatro casos caricatos”).
No caso de Setúbal ficou provado, por exemplo, que a educadora (condenada) “amarrou os pés e as mãos do B (menor) à cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para não perturbar o seu descanso”. Apesar disso, no texto do acórdão há frases como: “Qual é o bom pai de família que (...) não dá palmadas no rabo de um filho que se recusa a ir à escola? Ou que não dá uma bofetada?”
CONDENADA NÃO FOI DESPEDIDA
A encarregada do lar da Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental que foi condenada a dezoito meses de prisão, pena suspensa por um ano, continua a trabalhar na referida instituição como empregada de limpeza, segundo precisou ao CM a vice-presidente da Associação, Fátima Viegas. Numa reacção à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o presidente da instituição, José Salazar, sublinhou: “Não posso concordar com a institucionalização dos maus tratos”.
A arguida, que tem a 4.ª classe e que antes de ser constituída arguida meteu baixa por padecer de uma depressão grave, residia no lar, passando aí todo o dia e aí pernoitando, trabalhando entre as 07h00 e as 23h00. Por vezes à noite ajudava a colega a fazer o horário nocturno. Só a partir de Novembro de 1991 a arguida passou a ter uma folga, pernoitando uma noite fora do lar.
Fátima Viegas sublinhou que hoje “ninguém trabalha na instituição nessas condições e que a responsável pelo lar é uma técnica habilitada”. A Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental presta apoio a cerca de 400 pessoas, ao longo de toda a vida, dos concelhos de Setúbal e Palmela. “Destes, 13 são internos”, referiu Fátima Viegas precisando que “as pessoas têm idades entre os poucos meses e os 55 anos. Por falta de capacidades não podemos acolher mais pessoas.”
MENTALIDADE DA IDADE MÉDIA
O presidente da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), Humberto Santos, entende que “o despacho do Supremo Tribunal de Justiça ao defender a ideia pedagógica do estalo é próprio de uma mentalidade da Idade Média e não do século XXI”.
Humberto Santos defende o recurso para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos do acórdão, acrescentando que “um advogado contactou a associação para colocar a acção e um particular disponibilizou-se a pagar todos os custos.”
“O Tribunal Europeu é a única solução possível” para a sua anulação, referiu Humberto Santos. “Não podemos tomar a iniciativa de avançar para o Tribunal Europeu porque não fomos a entidade promotora da acção, mas podemos entrar em acordo com a parte interessada e disponibilizar os meios.” O advogado António Marinho disse ao CM que a nível interno é também “possível o recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do Supremo.”
Por sua vez, a Associação Pró-Ordem dos Psicólogos manifestou-se preocupada com pareceres judicias que podem ser entendidos como a legitimação do uso da violência nas tarefas educativas das crianças.
Em comunicado, a associação defende que embora os maus tratos possam parecer eficazes para parar de imediato um comportamento problemático, a sua eficácia é questionável tanto em termos morais como pelas consequências que produzem a médio e longo prazo, acentuando ciclos de violência.
No caso de menores e ou portadores de deficiência, o problema é para os psicólogos duplamente grave pela incapacidade que têm em denunciar a situação às autoridades.
“É urgente providenciar aos magistrados portugueses alguma formação especializada em áreas relacionadas com a parte social e humana”, sustentou Frederico Marques, da Associação de Apoio à Vítima.
REACÇÕES
"EM CASO ALGUM VIOLÊNCIA FÍSICA" (VIEIRA DA SILVA, MINISTRO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL)
“A única coisa que quero dizer sobre esse assunto é que as orientações, do ponto de vista do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social [que tem a responsabilidade de tutelar e financiar várias valências], é que todos os instrumentos de disciplina que sejam necessários devem ser implementados, mas que isso não deve, em nenhum caso, incluir violência física”, disse Vieira da Silva, acrescentando que não compete ao Governo concordar ou não concordar com as decisões dos tribunais.
"CONSIDERADO CASO CONCRETO" (DUARTE SOARES, VICE-PRESIDENTE DO STJ)
“O Supremo Tribunal de Justiça considerou que não foi atingido o limiar de gravidade para suscitar uma acção penal contra a senhora, que estava sujeita a um regime de trabalho exaustivo. O Tribunal não considera medidas gerais educativas de tratamento de menores, mas sim comportamentos de pessoas concretas”, disse Duarte Soares, recordando que além deste caso houve outros dois que “não foram suficientemente graves para serem considerados crimes”.
OS PASSOS DO PROCESSO
1992/2000
O Tribunal de 1.ª Instância provou que durante oito anos, a funcionária fechou várias vezes um menor deficiente na despensa com luz apagada.
12.01.2000
Encarregada do lar, então com 55 anos, entrou de baixa médica por padecer de depressão grave. Tinha a seu cargo 15 menores deficientes.
08.11.2001
Funcionária é constituída arguida. Tribunal de Setúbal condena-a a 18 meses de prisão, suspensos por um ano, por mulher não ter cadastro.
05.04.2006
O Supremo Tribunal de Justiça considerou, por unanimidade, “licitas” e “aceitáveis” palmadas e estaladas aplicadas por funcionária.
Enquanto a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados considera que a decisão “abre um péssimo precedente e transmite uma mensagem muito perigosa”, o Comité Português para a UNICEF considerou que a decisão do STJ “contraria o texto da Convenção das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo nosso país há mais de 15 anos, o que lhe confere força de lei”.
A organização lamentou “com veemência” o conteúdo do acórdão: “É especialmente lamentável que o STJ tenha pronunciado esta decisão num momento em que a comunidade internacional está a prestar uma especial e redobrada atenção à questão da violência contra as crianças”, refere em comunicado da UNICEF Portugal.
Nos termos da Convenção os Estados devem proteger-se todas as crianças contra “todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração”.
Neste sentido, refere o Comité Português para a UNICEF – liderado por Madalena Marçal Grilo –, as Nações Unidas já há mais de 15 anos que têm vindo a afirmar que as palmadas, as estaladas e outros castigos desumanos, como o encerramento de crianças em quartos escuros, consubstanciam casos de violência contra crianças pelo que representam claras violações da Convenção.
O gabinete referiu que Portugal tem vindo a ser instado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas a rever a sua legislação nesta matéria.
Decisão não é inédita
“Absurdo e vergonhoso” é como o advogado António Marinho classifica o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. O jurista vai mais longe e sublinha que o mais grave é que decisões destas por parte do STJ “nem sequer são algo de inédito na nossa Justiça”. (Ler “Quatro casos caricatos”).
No caso de Setúbal ficou provado, por exemplo, que a educadora (condenada) “amarrou os pés e as mãos do B (menor) à cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para não perturbar o seu descanso”. Apesar disso, no texto do acórdão há frases como: “Qual é o bom pai de família que (...) não dá palmadas no rabo de um filho que se recusa a ir à escola? Ou que não dá uma bofetada?”
CONDENADA NÃO FOI DESPEDIDA
A encarregada do lar da Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental que foi condenada a dezoito meses de prisão, pena suspensa por um ano, continua a trabalhar na referida instituição como empregada de limpeza, segundo precisou ao CM a vice-presidente da Associação, Fátima Viegas. Numa reacção à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o presidente da instituição, José Salazar, sublinhou: “Não posso concordar com a institucionalização dos maus tratos”.
A arguida, que tem a 4.ª classe e que antes de ser constituída arguida meteu baixa por padecer de uma depressão grave, residia no lar, passando aí todo o dia e aí pernoitando, trabalhando entre as 07h00 e as 23h00. Por vezes à noite ajudava a colega a fazer o horário nocturno. Só a partir de Novembro de 1991 a arguida passou a ter uma folga, pernoitando uma noite fora do lar.
Fátima Viegas sublinhou que hoje “ninguém trabalha na instituição nessas condições e que a responsável pelo lar é uma técnica habilitada”. A Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental presta apoio a cerca de 400 pessoas, ao longo de toda a vida, dos concelhos de Setúbal e Palmela. “Destes, 13 são internos”, referiu Fátima Viegas precisando que “as pessoas têm idades entre os poucos meses e os 55 anos. Por falta de capacidades não podemos acolher mais pessoas.”
MENTALIDADE DA IDADE MÉDIA
O presidente da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), Humberto Santos, entende que “o despacho do Supremo Tribunal de Justiça ao defender a ideia pedagógica do estalo é próprio de uma mentalidade da Idade Média e não do século XXI”.
Humberto Santos defende o recurso para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos do acórdão, acrescentando que “um advogado contactou a associação para colocar a acção e um particular disponibilizou-se a pagar todos os custos.”
“O Tribunal Europeu é a única solução possível” para a sua anulação, referiu Humberto Santos. “Não podemos tomar a iniciativa de avançar para o Tribunal Europeu porque não fomos a entidade promotora da acção, mas podemos entrar em acordo com a parte interessada e disponibilizar os meios.” O advogado António Marinho disse ao CM que a nível interno é também “possível o recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do Supremo.”
Por sua vez, a Associação Pró-Ordem dos Psicólogos manifestou-se preocupada com pareceres judicias que podem ser entendidos como a legitimação do uso da violência nas tarefas educativas das crianças.
Em comunicado, a associação defende que embora os maus tratos possam parecer eficazes para parar de imediato um comportamento problemático, a sua eficácia é questionável tanto em termos morais como pelas consequências que produzem a médio e longo prazo, acentuando ciclos de violência.
No caso de menores e ou portadores de deficiência, o problema é para os psicólogos duplamente grave pela incapacidade que têm em denunciar a situação às autoridades.
“É urgente providenciar aos magistrados portugueses alguma formação especializada em áreas relacionadas com a parte social e humana”, sustentou Frederico Marques, da Associação de Apoio à Vítima.
REACÇÕES
"EM CASO ALGUM VIOLÊNCIA FÍSICA" (VIEIRA DA SILVA, MINISTRO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL)
“A única coisa que quero dizer sobre esse assunto é que as orientações, do ponto de vista do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social [que tem a responsabilidade de tutelar e financiar várias valências], é que todos os instrumentos de disciplina que sejam necessários devem ser implementados, mas que isso não deve, em nenhum caso, incluir violência física”, disse Vieira da Silva, acrescentando que não compete ao Governo concordar ou não concordar com as decisões dos tribunais.
"CONSIDERADO CASO CONCRETO" (DUARTE SOARES, VICE-PRESIDENTE DO STJ)
“O Supremo Tribunal de Justiça considerou que não foi atingido o limiar de gravidade para suscitar uma acção penal contra a senhora, que estava sujeita a um regime de trabalho exaustivo. O Tribunal não considera medidas gerais educativas de tratamento de menores, mas sim comportamentos de pessoas concretas”, disse Duarte Soares, recordando que além deste caso houve outros dois que “não foram suficientemente graves para serem considerados crimes”.
OS PASSOS DO PROCESSO
1992/2000
O Tribunal de 1.ª Instância provou que durante oito anos, a funcionária fechou várias vezes um menor deficiente na despensa com luz apagada.
12.01.2000
Encarregada do lar, então com 55 anos, entrou de baixa médica por padecer de depressão grave. Tinha a seu cargo 15 menores deficientes.
08.11.2001
Funcionária é constituída arguida. Tribunal de Setúbal condena-a a 18 meses de prisão, suspensos por um ano, por mulher não ter cadastro.
05.04.2006
O Supremo Tribunal de Justiça considerou, por unanimidade, “licitas” e “aceitáveis” palmadas e estaladas aplicadas por funcionária.
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